Luís Eduardo Caldas – Advogado
Sócio de Lara, Pontes & Nery Advogados
No contexto da tendência de desburocratização e desregulamentação que atualmente se verifica nos movimentos oriundos do Poder Executivo Federal, entrou recentemente em vigor a Medida Provisória nº 881/2019, que trata da “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, buscando estabelecer “garantias de livre mercado”, de maneira a privilegiar a livre iniciativa, com a mínima intervenção do Estado, e, consequentemente, estimular o crescimento da economia e o destravamento de operações administrativas, mercantis e empresariais até então normativamente engessadas.
Embora o texto original da MP em vigor tenha sido editado com apenas 19 artigos – a maioria dos quais, em essência, já consagra a autonomia de vontade e a presunção de boa-fé dos atos praticados no desenvolvimento de atividade econômica, prevendo, inclusive, que “os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado” –, com a sua tramitação no Congresso, a Comissão Mista responsável pela análise da matéria aprovou o relatório do Dep. Jeronimo Goergen (PP-RS), que, além de acolher significativa parte das mais de 300 emendas, propôs importante alteração no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) que, há mais de 50 anos, representa, sem quaisquer modificações relevantes desde a sua aprovação, a principal baliza normativa específica dos contratos agrários.
Para tanto, estabelece-se, nessa pretensa modificação do Estatuto da Terra, a prevalência da “autonomia privada nos contratos agrários, exceto quando uma das partes se enquadre no conceito de agricultor familiar e empreendedor familiar […], quando então o contrato continuará regulado por esta Lei”.
Com efeito, essa pretendida primazia da autonomia da vontade nos contratos agrários se justifica em razão da excessiva limitação estabelecida legalmente quanto as mais variadas nuances e vertentes de seu conteúdo, de maneira que, atualmente, na redação original do Estatuto da Terra e do texto legal que o regulamenta – a exemplo do Decreto nº 59.566/66 –, a norma estabelece, de modo assaz arcaico, intervencionista e burocrático, que [a] todo e qualquer contrato de arrendamento rural pressupõe preferência em relação ao interesse de terceiros para fins de renovação, impondo-se ao proprietário a obrigação de notificar extrajudicialmente o arrendatário acerca das propostas de contratação oferecidas, com no mínimo 6 (seis) meses de antecedência ao vencimento do contrato e apresentando cópias autenticadas dessas propostas, mesmo a despeito da recorrente inexistência de Serventias Extrajudiciais em municípios pequenos e prioritariamente vocacionados à atividade rural; que [b] “a remuneração do arrendamento, sob qualquer forma de pagamento, não poderá ser superior a 15% (quinze por cento) do valor cadastral do imóvel, incluídas as benfeitorias que entrarem na composição do contrato, salvo se o arrendamento for parcial e recair apenas em glebas selecionadas para fins de exploração intensiva de alta rentabilidade, caso em que a remuneração poderá ir até o limite de 30% (trinta por cento)”; e que, [c] no caso dos contratos de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial ou extrativa, a participação do proprietário do imóvel rural sobre o fruto deles advindo deverá obrigatoriamente obedecer aos parâmetros máximos estabelecidos em lei.
Resulta evidente, portanto, que essa possível modificação legislativa, revelando-se absolutamente positiva, busca permitir que esses contratos agrários, diferentemente de como ocorre há décadas, sejam formatados e pactuados livremente entre os contratantes de acordo com as condições que melhor se lhes aprouverem, bem como dentro de suas expectativas, pretensões, capacidade e expertise.
Para melhor contextualizar esse raciocínio, vale dizer: à exceção de agricultores e empreendedores familiares – estes que, quando verdadeiramente detentores dessa condição, definem-se como potencialmente hipossuficientes e, portanto, merecedores de proteção normativa –, não faz sentido que, no âmbito de contratos agrários que envolvam atores com mínima experiência no agronegócio, absolutamente cônscios de todas as vicissitudes envolvidas em sua atividade, prevaleça a dicção de lei aprovada há mais de meio século para definir em quais bases devem ser delimitadas as condições de remuneração e rentabilidade desse negócio jurídico, ou mesmo para parametrizar aspectos contratuais de cunho estritamente negocial, tais como prazo, objeto e hipóteses de rescisão/resilição contratual.
No mesmo sentido, não parece razoável que uma lei se ponha a impor, em prejuízo de manifestação contratual de vontade, que, nos contratos agrários de parceria, quando o imóvel rural objeto da avença se prestar a sediar moradia para o parceiro-outorgado – o que, no caso de parceria firmada entre o proprietário e pessoa jurídica, ocorreria de maneira a atender eventual(is) preposto(s) e seu(s) familiar(es) –, o respectivo titular desse imóvel tenha que obrigatoriamente disponibilizar, às suas próprias custas, “casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de animais de pequeno porte” (art. 96, IV), mesmo essa moradia podendo ser edificada e/ou oferecida pelo próprio parceiro-outorgado, inclusive mediante ajuste contratual distinto (locação, comodato, etc.). Eis, inclusive, o exemplo mais emblemático do excesso de protecionismo e intervenção estatal decorrente do Estatuto da Terra nas relações contratuais privadas – o que, não sem razão, se busca positivamente repelir através do texto da MP em questão.
A propósito, não é demais lembrar que o Estatuto da Terra, nos moldes em que editado, resultou de esforço normativo concebido no auge do regime ditatorial militar – coincidentemente ou não, no simbólico ano de 1964 –, ao que tudo indica em uma pretensão de legitimação daquele regime frente à opinião pública, na medida em que representou o primeiro instrumento normativo a definir os rumos da reforma agrária no Brasil, esta que, à toda evidência, quedou desde sempre desvirtuada, de sorte que, distante de privilegiar em plenitude os seus reais destinatários, descambou-se a premiar muitos daqueles que, a pretexto de ostentarem a qualidade de trabalhadores rurais, em verdade traduzem-se verdadeiros especuladores imobiliários.
Tem-se, então, que a pretensão de alteração legislativa veiculada no projeto de conversão da MP nº 881/2019 para alterar o já obsoleto Estatuto da Terra, acaso aprovada, privilegiará a autonomia de vontade nos contratos agrários, consagrando, como já deveria desde há muito sê-lo, a mínima intervenção do estado sobre a economia, estimulando a pactuação desses contratos e a utilidade prática de imóveis rurais – alguns deles ociosos por força do mesmo estado que, em grande parte dos casos, imobilizando a livre iniciativa, se aproveita disso para expropriá-los a preço vil –, reforçando o exercício da função social da propriedade, incrementando sua produtividade e, em cadeia, promovendo a mais positiva e eficaz das reformas: a geração de emprego e renda, com reflexos inquestionavelmente positivos ao agronegócio, este, mesmo a duras penas, responsável por mais de 20% do PIB brasileiro.