Luís Eduardo Caldas
Sócio de Lara, Pontes & Nery Advocacia
Por muito tempo se conviveu com a ideia de que, em se tratando de ações de natureza possessória – nas quais, como sugere a denominação, invoca-se o direito de posse sobre um bem e, consequentemente, o seu resguardo –, apenas o ato molestador desse direito quando praticado há menos de ano e dia – mediante força nova, portanto – ensejaria a concessão liminar da proteção possessória, antes mesmo de estabelecido o contraditório e ouvida a parte ré no processo judicial.
Assim já ocorria por força da dicção literal do Código de Processo Civil de 1973, que estabelecia esse requisito em seus artigos 924 e 928, e continua se dando na norma processual atualmente vigente que, nos artigos 558 e 562, repete integralmente essa orientação.
Ocorre que, em muitos casos, impossibilidades de ordem prática e/ou material dificultam a determinação da ocasião exata em que se dá a violação desse direito de posse, assim como há outras tantas situações que, a despeito de se tratar de moléstia possessória efetivada mediante força velha – há mais de ano e dia –, reclamam defesa possessória imediata, sob pena de, em se aguardando a efetivação de medida judicial para após a cognição exauriente do litígio – logo, somente depois de esgotadas todas as etapas da instrução processual, levando isto muitas vezes anos a fio –, serem impostos à parte propositora da ação e/ou à própria coletividade prejuízos de difícil ou impossível reparação, tais como [i] o comprometimento definitivo da essência do bem litigioso, [ii] a ocupação de imóveis por centenas ou milhares de famílias, [iii] a realização indevida ou desfazimento de construções por aqueles que, destituídos de lastro financeiro, não teriam condições materiais de recompor o estado originário da coisa, ou mesmo [iv] a materialização irreversível de danos e outros ilícitos ambientais praticados no contexto de uma ocupação imobiliária irregular.
Considerando que essa problemática, em sua dimensão e recorrência, se coloca de maneira a comprometer a própria eficácia e efetividade da materialização do poder jurisdicional, esvaziando aquela que é a maior razão de ser do Estado-Juiz (entregar o ‘bem da vida’ ao jurisdicionado, à luz da lei e no menor espaço de tempo possível), fez-se necessário harmonizar o conteúdo da norma à sua aplicabilidade prática, de maneira que, por construção doutrinária e jurisprudencial, entende-se cabível a aplicação das tutelas de urgência e evidência no contexto das ações possessórias, a serem concedidas de modo antecipatório, quando eventualmente ausentes os requisitos que por definição básica autorizam, per si, a entrega liminar da proteção jurisdicional.
Nesse sentido, estabelece o artigo 300 do Código de Processo Civil vigente que “a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito [no caso, a posse propriamente dita em favor da parte autora] e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Logo, mesmo em prejuízo da demonstração da violação de direito de posse concretizada há menos de ano e dia, ainda assim é possível a concessão da proteção possessória em sede de tutela de urgência, quando demonstrada, prima facie, a higidez do direito à posse a justificar a pretensão autoral e, ao lado disso, a chance de, ao longo da instrução processual, acaso perdurem os motivos ensejadores da propositura da medida, decorrer risco de dano à parte interessada em seu deferimento e/ou comprometimento da utilidade prática da medida judicial que se objetiva, conforme se verifica presente nos exemplos práticos já descritos.
Aliás, não por outra razão, em demonstração dessa identidade normativa, o parágrafo segundo do retrocitado artigo que dispõe acerca das tutelas de urgência estabelece, inclusive, a possibilidade de justificação prévia do direito, caso este não seja demonstrado documentalmente por ocasião do ajuizamento da demanda, tal como identicamente se consigna no artigo 562 do Diploma Processual, voltado especificamente às ações possessórias e segundo o qual se “determinará que o autor justifique previamente o alegado”.
Então, em homenagem à total possibilidade de compatibilização entre as pretensões possessórias – que, na prática, em seu trâmite processual, tão logo estabelecido o contraditório, assume rito rigorosamente comum e, portanto, ordinário – e o instituto da tutela da urgência, é que a jurisprudência consolidou o entendimento de que “demonstrada a probabilidade do direito […] em ação de reintegração de posse, e a existência de ameaça de constrição sobre o imóvel, deve ser deferida a tutela de urgência”.
Por outro lado, há casos outros em que, além da moléstia possessória envidada mediante força velha a supostamente afastar a possibilidade de concessão da liminar possessória do artigo 562, circunstâncias fáticas e/ou processuais – como, por exemplo, eventuais tratativas entre as partes litigantes em ocasião bastante anterior à da propositura da ação – não raramente vêm a comprometer a materialização do requisito da urgência ínsito às tutelas de urgência, permitindo entender, também por exemplo, que, se realmente urgente a pretensão, a demanda correspondente teria que ser judicializada mais cedo.
No entanto, isto também não se coloca a inviabilizar a proteção possessória de modo antecipado, na medida em que se afigura também cabível, na espécie, a concessão de tutela de evidência com base no disposto no artigo 311 da Lei Processual, consistindo este em instituto que permite a outorga imediata dos efeitos da tutela, mesmo quando ausente ou indemonstrada a urgência e, ainda, antes do exaurimento da fase instrutória.
Para tanto, dentre outras hipóteses, faz-se necessário que haja nos autos “prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável”. Logo, interpretando-se sistematicamente esse dispositivo, à luz das demais normas de regência atinentes ao tema e que possibilitam a proteção liminar da posse, resulta óbvio que, inexistindo qualquer possibilidade de produção de prova capaz de infirmar ou impor dúvida às alegações e pretensões autorais, tem-se que viável o deferimento de medida possessória via tutela de evidência sem que necessariamente haja sido estabelecido previamente o contraditório.
Para exemplificar uma possibilidade que, pela lógica, autoriza a adoção dessa estratégica jurídica e decisória, tem-se, por hipótese, o caso em que uma empresa que há décadas inquestionavelmente exerce direitos de posse sobre imóvel de sua titularidade – sendo isto eventualmente fato público e notório –, mas, ainda assim, tem essa área, no curso desse legítimo uso do bem, irregularmente ocupada à luz do dia e às vistas de toda a população, por integrantes de um determinado movimento social, invasão esta que, a cada dia, ganha volume e cada vez mais adeptos, mesmo a despeito de terem sido feitas, no decorrer do tempo, inúmeras tentativas amigáveis desocupação da área violada, sem sucesso.
Nessa situação, parece óbvio que, em sendo tal lide submetida ao Judiciário pela legítima interessada, o simples fato de se tratar de violação possessória praticada mediante força velha não teria o condão de, por si só, inviabilizar a proteção possessória em sede de tutela antecipatória, mesmo que ausente o requisito da urgência, tanto mais quando, a partir do arcabouço probatório, somado às constatações que materializam fato público e notório, verifica-se ser inquestionavelmente provável a plausibilidade e legitimidade da pretensão autoral, mesmo em juízo de cognição sumária, o que indubitavelmente conduz à possibilidade de concessão da tutela de evidência, inclusive mediante fungibilidade que pode ser invocada ex officio para conversão das tutelas antecipatórias.
A propósito, por que não dizer: a própria liminar possessória do artigo 562 do CPC é, por si só, uma tutela de evidência, baseada em demonstração antecipada do direito alegado e dos fatos que dão ensejo à pretensão autoral, mas com um requisito adicional, qual seja, o da violação possessória mediante força nova, conforme já destacado ao norte.
Vale ressaltar, ainda, que, através de recente estudo realizado no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de dados obtidos pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, constatou-se que, enquanto um processo judicial leva em média mais de 600 dias para ser sentenciado, a apreciação de pedido de tutela de evidência ocorre em um prazo médio de 47,3 dias, o que, sem dúvida, mesmo a despeito de todos os entraves que impõem morosidade ao exercício da jurisdição no Brasil, privilegia o direito material tutelado na demanda e, por óbvio, a razoável duração do processo.
Feitas todas essas considerações, não se pode perder de vista, principalmente, que o processo judicial não pode ser considerado um fim em si mesmo, de maneira que aqueles a serem demandados em uma ação, justamente pela prática de um ato reputado ilícito, se aproveitem da demora inerente ao esgotamento da fase de conhecimento do processo, impedindo que a parte eventualmente lesada alcance a efetivação do seu bem jurídico tutelado.
Nesse sentido, necessário compreender os mecanismos de efetivação da jurisdição de maneira flexível, mediante interpretação teleológica das normas de regência, identificando-se o sentido de existência do preceito legal que os instituem e, com isso, alargando, tanto quanto possível, as hipóteses de utilização desses mecanismos processuais antecipatórios que, mesmo distanciando-se da letra fria da lei, mas amoldando-se ao contexto fático submetido ao Estado-Juiz, venham a tornar a prestação jurisdicional mais eficiente, palpável e célere, com vistas à pacificação social.