VOTO ABUSIVO: a dificuldade na aplicação do art. 39, §6º da Lei de Recuperação Judicial e Falências

Antonio Pontes de Aguiar Filho

Advogado sócio do Lara, Pontes & Nery Advocacia

A Lei n. 14.112/2020, dentre as inúmeras alterações que trouxe à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas (LRF – Lei n. 11.101/2005), acrescentou o §6º ao art. 39 na referida norma, com a seguinte redação:

§ 6º O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem.

Trata-se de dispositivo da LRF que disciplina o exercício do direito de voto pelos credores, estabelecendo a possibilidade de anulação do voto considerado abusivo.

O artigo em comento incide em certa obviedade, haja vista que o que se espera do voto dos credores na Assembleia Geral de Credores (AGC) é que sejam sempre no seu próprio interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência. Além disso, também é óbvio que o exercício do voto pelo credor terá por objetivo a obtenção para si de alguma vantagem, na maioria das vezes refletida em melhores condições para recebimento do crédito.

Entretanto, em que pese a redação inicial repleta de obviedades, a interpretação e aplicação do dispositivo acaba por se tornar controversa em decorrência do condicionamento da declaração de nulidade do voto do credor à demonstração de que a vantagem por ele almejada ao proferir seu voto é ilícita.

Nesse contexto, há que se destacar que a figura jurídica do voto abusivo não é uma inovação trazida pelo legislador na Lei n. 14.112/2020, mas uma construção jurisprudencial e doutrinária que já vinha sendo aplicada há alguns anos nos processos de recuperação judicial, a qual apenas foi positivada no referido dispositivo em questão.

O entendimento sedimentado no STJ sobre o assunto é de que de o abuso do direito de voto estaria presente quando determinado credor por dominar a deliberação de sua classe de forma absoluta em razão do montante do seu crédito, votaria contra o interesse da coletividade de credores. Nesse sentido o aresto do REsp n. 1.337.989/SP da relatoria do Min. Luís Felipe Salomão:

“visando evitar eventual abuso do direito de voto, justamente no momento de superação de crise, é que deve agir o magistrado com sensibilidade na verificação dos requisitos do cram down, preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores” (REsp n. 1.337.989/SP, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 8/5/2018, DJe 4/6/2018).

Sérgio Campinho, em seu Curso de Direito Comercial também aborda o tema do voto abusivo se valendo de um conceito aberto, caracterizando como abusivo e, portanto, passível de controle judicial, o voto eivado do que denomina ilicitude lato sensu, na qual engloba os votos proferidos em “abuso de direito, fraude ou violação da lei, da moral, dos bons costumes, da ordem pública e da boa-fé objetiva” considerando ainda como abusivo o voto “divorciado do desiderato da preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica”.

Como se observa, em dissenso à novel redação da LRF, a construção jurisprudencial e doutrinária sobre o tema não contemplava a exigência de que para a declaração de nulidade do voto, este fosse “manifestamente exercido para obter vantagem ilícita”.

A restrição trazida pela redação do novel dispositivo legal acaba por dificultar na prática o controle judicial sobre os votos praticados com o chamado abuso do direito de minoria por credores que, em total desprezo ao princípio da preservação da empresa e em prejuízo à coletividade de credores, se utilizam do peso do seu voto para impor a quebra da devedora que não atenda às suas exigências de pagamento.

Essa dificuldade se deve ao fato de que, nos casos em que não atendidos os requisitos para o cram down, previstos no art. 58, §1º da LRF, anular o voto desse credor qualificando a vantagem por ele pleiteada e defendida através de seu voto como uma vantagem ilícita nos termos do art. 39, § 6º da LRF será sempre uma árdua e subjetiva tarefa para o magistrado julgador.

Assim, para que se evite a inaplicabilidade do artigo em razão da indeterminação do conceito jurídico de ilicitude trazido por ele artigo é necessário que haja um maior delineamento do tema pela jurisprudência, estabelecendo de forma clara em quais hipóteses a vantagem pretendida pelo credor será considerada ilícita.